blog do GRUPO DE TEATRO BASTET

Cultura e Estados de Consciência

Texto transcrito do debate promovido em 1983 pelo Centro de Debates Maria Sabina que reuniu filósofos, advogados, antropólogos, juízes, escritores e deputados num simpósio para discutir a maconha. A eles foram propostas questões como a criminalização e a legalização da maconha, as dimensões cada vez maiores de sua utilização no Brasil, o funcionamento do seu mercado, o significado do uso da droga aqui e nas sociedades não ocidentais. Trazendo a público um assunto antes confinado às salas fechadas, discutiu-se o tema de forma ampla, resultando uma reflexão crítica e provocante.
O texto postado abaixo faz parte do livro Maconha em Debate publicado pela editora Brasiliense em 1985 e conta também com a contribuição de Jorge Mourão, Yvonne Maggie, Oswaldo Jr, Nilo Batista, Gilberto Velho e outros pensadores da cultura e organização da sociedade brasileira. Boa leitura.


Cultura e Estados de Consciência
Luiz Carlos Maciel
Escritor, jornalista, foi uma das primeiras expressões da chamada “contracultura” no nosso país. Publicou, entre outras obras, A Morte Organizada, em 78, e Negócio Seguinte, em 81.


Egocentrismo: uma trip da cultura ocidental.
A maconha e os estados alterados da consciência.
Qual foi a da “contracultura”.


Eu queria começar falando de macumba. Estive num terreiro de umbanda pra ver como era aquele processo de baixar santo, aquelas coisas, e uma frase eu guardei em relação a uma entidade chamada Exu, que era assim: “Marafo é o curiador de Exu”. Marafo é uma coisa simples de entender. Marafo é simplesmente cachaça. Exu é essa entidade que baixa, ou seja, é um estado psíquico mais particular, mais especial que domina o médium naquele momento. E curiador, o que será? Essa palavra é uma palavra que só tem uso, eu acho, na umbanda, e o que eu entendi é que curiador é exatamente aquele estado de consciência chamado Exu. Quer dizer: o médium toma cachaça, o seu estado de consciência se modifica e o Exu se manifesta. O que ficou claríssimo aqui é que existem diferentes estado de consciência. O ser humano tem a capacidade natural de experimentar n estados de consciência, um número absolutamente indeterminado, é impossível catalogar todos os tipos de consciência que o ser humano é capaz de experimentar, e esses estados de consciência são ligados a coisas que se ingere, a coisas que se bota pra dentro do corpo. Isso não precisa ser necessariamente uma droga violenta e nociva como o álcool, mas tudo que se ingere pode ser considerado como alterador da consciência. Se você passar a comer só arroz integral, o seu estado de consciência vai necessariamente mudar, você vai ter outro estado de consciência. Se você for fazer ioga e desenvolver sua capacidade respiratória – parar de fumar, que diminui a capacidade do pulmão – essa maior quantidade de ar que você botar pra dentro do seu corpo vai, automaticamente, mudar o seu estado de consciência. É o estado de consciência dos iogues. Então, isso é uma verdade dificilmente discutida, hoje já se pode dizer que corpo e mente são uma coisa só. Pode-se admitir, no máximo, que corpo e mente sejam dois aspectos de uma só coisa, mas tanto são uma coisa só, que certos estado psicológicos são somatizados e modificam o corpo. E, da mesma maneira, alterações no corpo também vão modificar a mente. A medicina psicossomática vive disso, sobre essa verdade.

O estado de consciência, ou os estados de consciência, prevalecentes numa determinada cultura, vão caracterizar esta cultura, de uma maneira ou de outra. Como os curiadores modificam o estado de consciência, nós podemos chegar à conclusão de que existem, nas diferentes culturas, os seus curiadores culturais, quer dizer, aquelas coisas que as pessoas tem o habito de fazer, e que vão colocar sua consciência num determinado estado que é oficial, é privilegiado dentro daquela cultura. Há uma tendência dessa cultura de preservação, uma dinâmica própria de se manter, que vai procurar então que todos os membros daquela sociedade tenham o estado de consciência semelhante.

A nossa cultura, a cultura ocidental, é caracterizada por um estado de consciência particular, um entre vários outros, e não significa necessariamente que sejam a normalidade do ser humano, porque esta normalidade filosoficamente seria impossível de ser definida, tal a variedade desses estados de consciência e tal a capacidade da mente de percorrer diferentes estado de consciência, até sem curiadores, num movimento espontâneo, porque a mente é eternamente dinâmica. De forma que a nossa cultura tem um estado de consciência particular, unzinho só entre vários possíveis, que não foram os que aconteceram em outras culturas, que se caracterizam por elementos positivos, mas que tem elementos profundamente negativos.
É uma cultura racionalista, discursiva, intelectualista e agressiva, violenta, competitiva e numa palavra, pra resumir tudo, egocêntrica. É uma cultura que privilegia um estado de consciência em que o ego individual tem uma importância fundamental, tudo deve ser feito em função desse ego, tudo deve ser feito em função da valorização desse ego. É a sede desse ego de se valorizar, de se inflar que leva a essa agressividade, essa competitividade e essa violência que caracterizam a nossa cultura.

Nos anos 60 aparece, principalmente na juventude do mundo ocidental, um movimento que se chamou contracultura, os hippies, essas coisas todas cuja descoberta fundamental foi simplesmente a seguinte: de que o estado de consciência prevalecente em nossa cultura não era absoluto nem obrigatório. Claro que a função da educação é nos convencer desde pequenininhos que este estado de consciência e os valores que ele envolve são definitivos, são a normalidade do ser humano, que o ser humano é assim e não pode ser assado de jeito nenhum, apesar de todas as guerras e doenças e neuroses e violência que são decorrentes de uma cultura sentada sobre esse estado de consciência. Pode existir todo o horror de que nós temos conhecimento diariamente através de jornais, mas não podemos escapar desse horror porque o estado de consciência que nós vivemos é o definitivo, o que Deus quis, é por decreto divino que nós supostamente devemos viver.

A descoberta da juventude, de que havia outros estados de consciência, possibilitou uma nova perspectiva cultural, quer dizer, ficou claro que com outros estados de consciência pode-se criar uma cultura diferente. Então, se por um lado, por exemplo, este outro estado de consciência não tiver os mesmos poderes de racionalidade, intelectualização e discurso que o EC da nossa cultura tem, em compensação ele poderá oferecer uma sensibilidade maior para outros valores. Valores sensoriais, valores de sentido, audição, visão, gosto, tato, valores da fantasia, da imaginação, da criatividade, valores artísticos. Isso aconteceu com a contracultura, até que ela foi sufocada porque simplesmente a cultura estabelecida não pode permitir que ela seja posta em questão, no sentido de que ela não seja absoluta, não seja única.

Antes de mais nada, quem fez a contracultura foram as próprias condições deploráveis do nosso mundo, da nossa sociedade e da nossa cultura. Foi o próprio fato de depois de séculos dessa cultura que, por ser agressiva, competitiva e violenta, e também extremamente pretensiosa, se julga a coisa mais incrível e mais fantástica que o ser humano já fez. O próprio fato da nossa cultura ter chegado a um ponto de sufoco e asfixia fez com que as novas gerações nos anos 60 tivessem uma espécie de reação natural, espontânea. Tiveram que fabricar de alguma maneira um antídoto natural para esse veneno todo. Essa foi a primeira coisa que deflagrou, mas não se pode negar que, acompanhando esse processo, houve a presença das drogas chamadas alucinógenas ou alucinogênicas, e que constituem então uma espécie de curiador dessa nova cultura.

Não era necessário que uma pessoa fumasse maconha para viver aqueles valores novos que estavam sendo agitados. Mas não havia duvida de que o EC propiciado pela maconha era um EC que envolvia uma sensibilidade para esses novos valores, de preferência aos valores convencionais da nossa cultura. Eu acho que é muito importante se colocar a questão psicológica, essa questão da mudança do EC, porque ela é mais determinante do que os pensamentos racionais e discursivos que se possa ter sobre a realidade. Quer dizer, eu posso ter um pensamento racional e discursivo de que a nossa sociedade é assim, está muito bem assim, o capitalismo é ótimo e não há outra maneira de o ser humano funcionar senão a maneira capitalista, tudo isso raciocinado e pensado, ou posso raciocinar e pensar que não é nada disso, que o capitalismo é um horror, que é uma coisa feita de exploração de uns sobre os outros, e que então é preciso fazer uma revolução, mudar a sociedade, instalar algum tipo de socialismo, tudo isso racionalizado e pensado.

O que foi descoberto pela juventude de classe média do Ocidente nos anos 60, é que esses dois pensamentos são mais parecidos entre si do que se julgam, porque são pensamentos discursivos, não envolvem outro estado de consciência que possibilite uma sensibilidade diferente da realidade, uma maneira realmente diferente de se aprender a realidade e de se comportar em relação a ela. As características da nossa cultura, de que o mundo, por exemplo, é um artefato de objetos, pronto e completamente matematizável, racionalizável, que se pode aprender qual é o mecanismo dele e depois manipular esse mecanismo ao bel-prazer, essa idéia pertence tanto aos conservadores quanto aos revolucionários, tanto à esquerda quanto à direita. Agora, um outro EC que nos revele claramente que o mundo não é objeto nenhum, que o mundo é uma experiência imediata, que a aparência do objeto só se dá na nossa mente porque nós articulamos os diferentes momentos dessa experiência imediata numa série articulada qualquer, uma historinha, o que dá a ilusão de que existe esse objeto, esse artefato. Nós vivemos todos os dias nessa alucinação – porque esta é uma verdadeira alucinação – de que este objeto existe e não é apenas uma soma mental de experiências instantâneas. Então, estar neste outro EC leva a um conhecimento da realidade que não tem nada a ver com os discursos racionais de esquerda ou direita, conservadores ou revolucionários. É um conhecimento. Não é um conhecimento do mesmo tipo do conhecimento discursivo, mas é um conhecimento, uma consciência que você tem da realidade, é uma relação que você tem com a realidade, uma maneira de agir com esta realidade. Talvez não seja uma maneira tão eficiente no sentido de fabricar foguete para a Lua, de fazer bomba atômica, mísseis, Exocets e submarinos nucleares. Talvez você não faça isso, mas o que o ser humano pode pretender nesta curta vida? É fazer bomba atômica, voar até a Lua ou encontrar a sua felicidade natural?

Uma outra maneira de ver, perceber a realidade, pode conduzir o ser humano a essa felicidade natural que é o verdadeiro objetivo, e à qual nem foguetes nem bombas atômicas nos levarão. Estou dizendo que esta certa maneira de ver a vida, que é a maneira da nossa cultura, da nossa civilização, é estabelecida por um determinado EC, e que se há outros EC você constrói uma cultura diferente, uma civilização diferente. Que nós somos acostumados pela nossa educação, pelo sistema educacional todo, pelos familiares, pelas estruturas da nossa sociedade a achar que nossa cultura é a “bamba”, que a maneira como ela funciona é que é legal, é a que Deus quis; isso é uma arbitrariedade mantida inclusive à força policial em certos casos, como no caso desse curiador cultural que é a maconha. O álcool apesar de ser tão nocivo, ser tão horroroso, matar as pessoas cedo, deixar pirado e tudo isso, tem seu consumo estimulado em nossa sociedade. Porque é uma droga egocêntrica, é uma droga competitiva, é uma droga que o EC que ela induz corrobora os valores estabelecidos da nossa cultura. Enquanto que a maconha induz a um EC cujos valores são negados por essa cultura, quer dizer, não interessa a essa cultura, vai atrapalhar a historinha que ela tá fazendo.

Timothy Leary ficou conhecido lá nos EUA como o papa do LSD, porque ele era um psicólogo da Universidade de Harvard, descobriu uma droga alucinógena fortíssima, sintetizada quimicamente, que é o LSD, se interessou, pesquisou sobre isso e passou a ser um apóstolo da coisa, exatamente por seu poder de alterar a consciência e fornecer uma nova maneira de ver as coisas. Pois bem, Timothy Leary foi perseguido pela polícia americana, até que conseguiram pegar Leary com uma trouxinha de maconha e botaram ele em cana, numa penitenciária. A mulher do Leary na época Rosemary, começou a batalhar para ver se tirava o Leary da cadeia. Entrou em contato com os Wheterman, que era um grupo de esquerda clandestino, revolucionário, que havia nos EUA, formado todo por garotada de classe média. Todos eram antigos ativistas estudantis e caíram na clandestinidade e criaram os Whetherman. Então eles fizeram o plano de fuga para o Leary, que executado foi bem sucedido – no seu livro ele conta como é que foi essa fuga - ele fugiu da cadeia, ficou escondido, tinha que sair do país, aí ele queria ver se fugia pela fronteira com o México, que é o que sempre fazem lá, mas o s Wetherman disseram assim para ele: “Não, você vai pegar um avião, vamos disfarçá-lo, vamos tirar documentos falsos pra você, tirar passaporte, tudo isso, e você vai para a Argélia, porque você vai ficar com nosso companheiro Cleeved e os Panteras Negras, que estão exilados lá na Argélia”. Timothy Leary se disfarçou todo, pegou os documentos falsos, apanhou o avião e foi para a Argélia. Quando chegou lá foi instalado pelos Panteras Negras numa casa e foi recebido muito bem pelo Cleeved, tudo porque era aquele negócio, a fraternidade dos revolucionários, dos que estão contra o sistema, todos se irmanam. Muito bem, vocês sabem o que aconteceu? Em questão de uma semana o Cleeved e os Panteras Negras, primeiro lugar: apreenderam toda a maconha que Leary tava levando com ele; segundo lugar: prenderam o Leary na casa em que ele tava. Cleeved botou os Panteras Negras armados de metralhadoras e o Leary confinado lá dentro, e explicou: “Não posso, esse homem é muito louco, desde que ele chegou aqui – isto é um quartel revolucionário – ele transformou isto numa festa permanente. É uma farra todo dia, chega um monte de hippies todos coloridos, tocam violão, ficam pintando as paredes, começaram a fazer a festa”.

Quer dizer, o Cleeved era um revolucionário, mas um revolucionário ao antigo estilo, o estado de consciência dele era tão contraído quanto, exagerando um pouco, o de Ronald Regan, por exemplo. Para ele a realidade era uma coisa séria, para ele a revolução era uma questão de armas, de dar tiros, saía com uma metralhadora dando tiros, isso igualzinho os soldados de Ronald Regan que entraram lá em Granada e bombardearam o hospital psiquiátrico de lá.

Eu acho que o caso da descriminalização é uma tarefa realmente muito difícil, porque uma descriminalização da maconha, e, portanto, a oportunidade de que o uso da maconha seja maior, vai espalhar um outro estado de consciência que vai envolver espontaneamente outros valores que não são os valores que esta cultura deseja estabelecer para todo mundo. Há então, um certo mecanismo de autodefesa da cultura, dessa maneira da sociedade e do mundo estarem organizados, para que ela não sofra uma fratura qualquer. Eu acho até que a nossa sociedade é uma sociedade decadente, é uma sociedade que esta se esfarelando. Por isso é que há, inclusive, essa oportunidade de a gente estar debatendo esse tema, porque se houvesse mais rigidez, nem deixavam a gente falar nada aqui, como passamos muito tempo sem falar nada. Se ela não estivesse assim, eu acredito até que seria mais fácil descriminalizar a cocaína do que a maconha; porque a cocaína é uma droga que nos induz a um estado de consciência não muito diferente do comum. A cocaína é uma droga do ego, também é uma droga que reforça o ego. O sujeito pega a cocaína, se acha o maior do mundo, aí ele fala, trabalha. O executivo gosta de cocaína, os caras da Bolsa gostam de cocaína. Quer dizer, é um estado de consciência mais próximo do estado de consciência aceitável e desejável pela organização da nossa sociedade. Eu li uma vez um ensaio de um cara que fez uma pesquisa na Índia. A Índia tem aquela sociedade tradicional de divisão rígida de castas, lá você tem realidades culturais mais separadas coexistindo muito mais separadas porque a divisão em castas é rígida. O cara fez uma pesquisa de campo numa província da Índia sobre drogas intoxicantes nas diferentes castas. Verificou que o álcool, como o consumo de carne, que é uma coisa que parece que todo biriteiro tem que comer para equilibrar a birita, era institucionalizado na casta dos guerreiros e dos mercadores. Os brâmanes, os caras que não sujam as mãos nem com o vil metal, nem com o sangue dos seus semelhantes, os brâmanes que vivem para o espírito não comem carne, nem tomam álcool, consomem um preparado deles feito com a velha cannabis sativa. Quer dizer, o curiador cultural dos brâmanes é um, o curiador cultural dos guerreiros e mercadores é outro. Nossa sociedade, que é uma sociedade, uma cultura, não de brâmanes, nós não temos brâmanes na nossa sociedade, não temos homens sábios, é uma sociedade da carne e do álcool, e vai ser muito difícil modificar isso.

Eu vejo só uma possibilidade, que é a de transformação da consciência das pessoas de nossa sociedade, em um número cada vez maior, e uma outra maneira de ver a realidade, experimentar a realidade. Eu não estou dizendo com isto que, pra haver esse outro estado de consciência, essa pessoa precise fumar maconha não, porque pode comer arroz integral, pode fazer ioga, pode fazer meditação, pode simplesmente respirar mais ar que a cabeça já melhora.

0 comentários:

Postar um comentário

Translate: